sexta-feira, dezembro 30, 2016

diz de mim
esse céu de chumbo
que desaba
e  cinco minutos depois se abre lânguido
pro sol passar

diz de mim a desistência rotineira
quando perco a hora
o ônibus
a vaga
o bonde da história
e sento do meio-fio
pra pagar a conta atrasada
enquanto meu amor não chega

diz de mim
o bolo solado
o arroz papa
a RG perdida
os juros de mora

porque não sei dançar conforme a música
o calendário
o contrato
 as normas
os prazos
a métrica
o edital
 então tropeço nos tapetes das etiquetas
 e me perco nas ruas do Saara
numa tarde dezembro...

terça-feira, abril 26, 2016


Para dias de ódio declarado em ruas, restaurantes e congressos, Drummond nos sopra uma brisa....
A Flor e a Náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio

terça-feira, março 22, 2016

Hoje já é quase amanhã
E eu lembro quase tudo que quase fiz
Quase disse a palavra burilada na garganta
Quase dei o abraço germinado no peito
Quase escrevi o poema adormecido na pena
Quase morri a morte distraída
Quase voei sobre as casas da Lapa no alvorecer de Chagal 
Quase mordi a boca oferecida
E revi pra chorar convulsiva
Amélie dissolver quase entregue em purpurinas dissonantes
Quase ...
Ah! Queridas reticências!
De verbo suspenso de quase ação
Quase amei intransitivamente meu querido Mário!
Quase cheguei e perdi o horário
Quase!
E como pessoa: vil, ridículo, perdulário

fui clown-bissexto
e perdi a corrida de marcha à ré
e perdi o bonde
e quase sorri
mas quase é tempo não nascido
não contado
é tom sépia 
desmaiado
quase é o tempo que esses tempos não conhecem 
só há flit, flash, fast
Ávidos 
quando quase chegam já se vão
De hoje amanhã nem cheiro têm
tempos sem tempo de cozer em forno a lenha 
de Penélope puída
em que não cabe o tempo plácido 
tempos de futuro do pretérito preterido
pois quando ia já não vai
só o presente contínuo de gozo imediato
e já é
onde amores fluidos 
se vão diluídos
nos olhos quase profundos...
Que à noite vêm